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Foto do escritorOldemar Carvalho Junior

Uma égua chamada Rosinha e o aquário

Atualizado: 13 de jun. de 2023

A Praia do Cassino na década de 80 era muito diferente do que é agora. Cinco anos, talvez os melhores da minha vida. Quando paro para pensar sobre essa época, muitas coisas me vêm à cabeça. Muitas experiências, aventuras, surfando ondas gigantes no molhe do Cassino, mergulhando nos túneis verdes-escuros dos arroios do Bolacha..., e a Rosinha. Uma égua crioula, ranzinza e sempre mal-humorada.
Nessa época eu morava com Patricia na penúltima casa de uma rua no Cassino. Na última morava Helio Bulhões, carioca, veterano da Oceano. Hélio cuidava da Rosinha, uma égua crioula, cor caramelo. O dono dela era de Rio Grande, empresário, proprietário de uma boate na cidade. Perguntei se ele montava nela. Respondeu-me que não, que ela mordia e derrubava as pessoas que tentavam. Que não era de confiança. Que o proprietário tinha sido derrubado por ela e depois disso deixou ela com Helio. Segundo Helio, a pessoa montava, ela fazia de conta que estava tranquila, mas logo dava um jogo de corpo se contorcendo e lançando a pessoa pro chão. Sabendo disso admirei ela ainda mais.
No meu tempo de folga dos estudos eu adorava mergulhar nos arroios do Bolacha. Ia de máscara e pé de pato, caminhando ao longo do arroio por algum tempo até um ponto onde entrava e ia descendo com a corrente. Horas de descida, num ambiente mágico, espetacular. Cheio de peixes, luzes e plantas. O grande desafio era atravessar os túneis de plantas, escuros, sem avistar o final, devido às curvas. Já estava acostumado, mas as primeiras vezes foi de acelerar o coração. Havia escutado histórias de pessoas que morreram afogada nesses túneis, sem encontrar a saída, ficando presas pelas plantas, sem acesso à superfície.
Decidi montar um aquário para observar melhor as espécies de peixes dos arroios do Bolacha. Montei um aquário com espécies vegetais e peixes locais. Ficou lindo mesmo. Passava horas observando a minha criação, me familiarizando com os peixes e as plantas, que encontrava depois no ambiente natural do arroio. Ficava um tempo com os peixes, depois soltava e trocava por outros. Tive aquários desde criança. Meu quarto em Florianópolis tinha uma parede com mais de 11 aquários, com peixes nativos da Ilha. Portanto, já tinha experiência e para mim era fácil montar um. O aquário virou notícia entre a pequena comunidade do Cassino e, acabei recebendo a visita de um casal do interior do RS que tinha recém se mudado para o Cassino. Queriam comprar o aquário. Era um casal super simpático, mas educadamente falei que no momento não tinha intenção de vender. Conversamos bastante sobre peixes e aquários. Ao se despedir disseram que se eu mudasse de ideia que os procurasse.
Tinha me mudado da casa no fim da rua do Bolacha e fui morar num casarão antigo, também no Bolacha, mas mais retirado, na campanha. Era uma área de campo e na propriedade morava o Seu Aldo, um gaúcho tradicional, que com sua esposa, cuidavam de 10 vacas-leiteiras. Vendiam o leite e também recebiam um valor da dona do casarão para cuidar da propriedade. No início ele me olhava com desconfiança, e penso que não estava gostando muito de eu estar ali. Comecei a estudá-lo também. Agora eram os peixes do aquário, o seu Aldo e sua esposa. Eles já tinham idade avançada, mas se levantavam cedo, ainda escuro para tirar o leite das vacas. Depois disso ele saia, o dia raiando, com as vacas, e pegava a estrada. Sumia por algumas horas e depois retornava para o chimarrão. No fim do dia ia buscar as vacas de volta, para no outro dia tirar o leite novamente. Assim os dias se repetiam. A esposa dele, com idade avançada, tinha artrite nos dedos das mãos, mas isso não a impedia de ordenhar as vacas.
Era uma vida simples, ordeira, planejada. Isso me fascinava. Chegou a hora de fazer a horta e, para isso, falei com Seu Aldo, se ele podia me vender uma carroça de esterco das vacas para eu poder adubar os canteiros. Nessa época eu estava bastante envolvido com o movimento macrobiótico Princípio Único, do falecido e querido Prof. Tomio Kikuchi. Kikuchi vivia em São Paulo, na sede do Instituto Princípio Único, mas um casal abriu um restaurante macrobiótico ligado ao movimento em Rio Grande, e ali eu passava algumas horas do dia, ajudando e participando das atividades. Procurava levar uma vida simples e saudável, jogava capoeira na rua, era instrutor de ioga e ajudava a dar aulas numa escola de ioga em Rio Grande. Até hoje faço ritmoprática, uma série de exercícios que aprendi com Kikuchi, excelente para iniciar o dia. Ah, eu estudava também... fazendo Oceanologia na Furg. Assim, vocês podem entender como o Seu Aldo e esposa me causavam admiração. Mas voltemos à Rosinha.
Como comentei, já morava em outro lugar, uma área mais afastada, num casarão, numa zona rural. Eu tinha uma moto TT 125 e estava indo para a Furg quando passei em frente a polícia rodoviária, que ficava na entrada do Cassino. A PR possui um cercado para manter animais soltos na rodovia e, para minha surpresa, lá estava Rosinha. Dei meia volta e entrei na PR para saber o que tinha acontecido. A Rosinha foi pega em flagrante delito andando no acostamento da rodovia e presa. Existe um prazo para que o dono do animal se manifeste e pague uma multa para poder retirar o animal. Entretanto, como no caso da Rosinha ninguém havia se manifestado, ela seria entregue no dia seguinte para ser sacrificada. Dizem que vai para fazer sabão. Que situação!
O valor não era irrisório, aparentemente estava lá já fazia vários dias e, obviamente não tinha o montante para pagar. Hélio estava viajando, então decidi ir atrás do empresário. Localizei o sujeito no seu escritório na mesma tarde e expus o problema. Para minha surpresa ele me disse que não tinha o dinheiro e que não podia fazer nada. Propus para ele que eu pagasse e ele me doasse a égua. Ele topou. Não tinha mais interesse mesmo no animal. Para ele Rosinha já estava morta fazia tempo. Passo seguinte era arrumar o dinheiro e salvar Rosinha do destino cruel. Lembrei do casal gaúcho e do interesse deles, pelo meu aquário. Hora de negociar!
A negociação era simples. Eles me pagavam o valor devido à Rosinha pelo aquário e eu ainda dava manutenção por um ano. Expliquei a situação da Rosinha e para que o dinheiro seria usado. Acredito que eles se comoveram com a situação, não sei, porque o valor do aquário, ou da Rosinha, era maior que ele valia. Acontece que o casal era muito bem de vida, pecuaristas, donos de fazenda. Assim foi concretizada a negociação. Pagaram-me em dinheiro vivo. Corri para a PR e paguei as multas. Sai puxando a Rosinha por uma corda, andando, eu e ela, em silêncio, até o casarão onde morava. Vocês podem imaginar a cara do Seu Aldo quando cheguei com a Rosinha. Não entendeu nada.
Acordava cedo, escovava a égua, alimentava e depois soltava no pasto atrás do casarão. Assim fui fazendo amizade com ela. Rosinha era grande, imponente, uma autêntica égua crioula, marchadora e... com péssima reputação. Aos poucos comprei um basto, pelego, manta, cabresto, freio leve, etc. Comecei a montá-la no pasto atrás de casa e, como já sabia das manhas e das manhãs dela, não deixei me dominar. Passei a infância montando cavalo de carroça no interior de Santa Catarina, e não era a Rosinha que ia me jogar no chão. Bem que ela tentou algumas vezes.
Passado um tempo fui ter uma prosa com Seu Aldo. Ofereci-me para trabalhar para ele, levando e trazendo as vacas, sem nenhum custo. O meu interesse era ter experiência com o serviço de campo. Com relutância o velho gaúcho aceitou. Assim começou minha experiência de peão.
As vacas eram ordenhadas de manhã cedo, ainda escuro. Assim que o dia clareava, reuníamos a bicharada e, a cavalo, íamos pela estrada de chão batido até um pasto distante cerca de 1 hora. Ali soltávamos as bichas e retornávamos para casa. Era o tempo para me arrumar e ir para a facu. No fim de tarde, voltando das aulas, vamos novamente ao campo para recolher as vacas e trazê-las para que fossem ordenhadas no dia seguinte. Era corrido, mas dava certo.
Eu montava a Rosinha apenas com pelego, por uma razão muito simples, que deixava o Seu Aldo às gargalhadas. O campo de pastagem das vacas era lindíssimo, típico dos pampas gaúchos. A área era pontuada por gravatás e pequenos banhados espalhados pelos campos. A Rosinha não podia ver esses mini banhados. Começava a dobrar as pernas dianteiras, ia se deitando de lado e ficava com as pernas para cima esfregando as costas na lama com água, na maior alegria. Já acostumado com esse comportamento dela eu ia preparado. Assim que ela ia dobrando as pernas dianteiras eu já segurava o pelego e ia escorregando de cima dela para ela ficar à vontade.
Para o seu Aldo isso era gravíssimo. Eu era comandado pela égua, não tinha autoridade, etc., mas ele também se acostumou e tirava graça da situação. Não deixava de ser engraçado, um gaúcho montado olhando para um jovem em pé ao lado da montaria que se deliciava numa poça de água balançando as pernas no ar como um perro alegre. Logo, se levantava, sacudia o corpo, assumia aquela pose de Vossa Majestade novamente como se nada tivesse acontecido, e eu montava nela novamente. Essa mania da Rosinha acabou se incorporando na nossa rotina, mas não sem perder um pouco do respeito que eu tinha com o Seu Aldo, se é que tinha algum.
O respeito só foi recuperado no dia que uma terneira saiu em disparada na nossa frente, se desgarrando do grupo. Sem falar nada a Rosinha disparou atrás dela e foi costeando a terneira na cerca de arame farpado até pará-la. Não fiz nada. Só fiquei montado agarrado nela para não cair. Nem eu, nem o Seu Aldo podemos esconder nossa surpresa e admiração pela Rosinha. Se revelava aí uma autêntica égua crioula, e parecia ter experiência no assunto. Quanto a isso nunca soube. Nunca consegui detalhes do passado da Rosinha, mas parecia que ela já tinha lidado com o serviço de campo.
Aprendi muito com Seu Aldo. Uma das coisas que ele me ensinou foi seguir rastros e encontrar uma terneira escondida. A vaca quando dá à luz ao terneiro costuma escondê-lo. No fim da tarde sabendo que ela pariu temos que encontrá-lo. Não foram poucas as vezes de chegar já de noite em casa, depois de algumas horas de busca no campo. Era um trabalho incrível e a Rosinha parecia curtir tudo isso. Era sempre uma alegria quando achávamos o terneiro(a).
Vale lembrar que, depois das primeiras semanas, a Rosinha nunca mais tentou me derrubar da montaria. Acredito que ela estava feliz com essa nova vida e era super bem tratada. Uma amiga mesmo. Não preciso dizer que quando me formei ela fez parte da mudança. Foi num caminhão de transporte todo acolchoado, super confortável até a Lagoa do Peri onde eu já estudava as lontras. Parou no jóquei cube de Porto Alegre e no outro dia seguiu viagem. Eu atrás com um Fiat uno super apertado seguia o caminhão. Ela ia mais confortável do que eu.
Na Lagoa do Peri ela adorava entrar na lagoa, até o pescoço quando começava a nadar, e eu agarrado no pescoço dela. Continuávamos nos divertindo. Não tinha mais as vacas, mas, sempre que podia, saia com ela pelas trilhas para se exercitar. Ela foi envelhecendo e eu parei de montá-la em função da idade. Passava o dia no pasto, ganhava a ração no final do dia. Era escovada e banhada com mangueira. Foi assim até morrer, com mais de 20 anos. Hoje vive na minha lembrança, como o Seu Aldo, as manhãs e as tarde nos campos de Rio Grande campeando terneiras fujonas e tocando as vacas pela estrada com o sol nascendo na campanha.

Rosinha, Mário e Mulata, 1988.

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